terça-feira, 14 de novembro de 2006

Garganta Profunda em telecurso

Garganta Profunda em telecurso

Um clássico do sexo explicito na telinha

Garganta Profunda (Deep Throat, 1972) foi relançado remasterizado em DVD. Disponível pra quem já assistiu e pra quem quer assistir esse verdadeiro clássico do cinema pornô. Foi o filme que estabeleu padrões, convenções e clichês utilizados na indústria pornô até hoje. Político, pôs em xeque as liberdades individuais e de expressão em todos os países democráticos da época – o Brasil era, em 1972 uma ditadura militar conservadora, então a censura por aqui foi apenas óbvia; na Europa e nos Estados Unidos, tidos como liberais, foi um escândalo. Garganta afrontou os costumes por ter desfeito preconceitos a respeito do gênero pornô e da prática do sexo oral.

Como o público gay vê filme hétero numa boa, diferente dos hétero, que não assistem (ou não admitem assistir) filmes gays, esse filme foi e ainda será visto pelos gays. Quando estiverem vendo percebam que Linda Lovelace (Linda Susan Boreman, 1949-2002), no papel dela mesma, de alguma forma, representa todos nós. Garganta Profunda só chegou aqui por volta de 1984, já alçado à imprecisa categoria de cult lá fora. No Brasil dos anos 80 as normas da censura federal que proibiram a exibição por mais de 10 anos já haviam afrouxado. Formaram-se filas nas portas dos cinemas para ver o filme que fora a sensação em outros lugares. No Recife foi exibido em seção dupla, com o Diabo na Carne de Miss Jones (The Devil in Miss Jones, 1973), dirigido pelo mesmo Gerard Damiano (a.k.a Jerry Gerard) no Cine Trianon, na Avenida Guararapes, hoje fechado como tantos outros cinemas do centro da cidade. Naquela época o videocassete doméstico ainda não era um aparelho popular (e hoje já está quase extinto!), então quem quisesse assistir este clássico tinha mesmo que ir a uma “sala especial”, como eram classificados os cinemas que exibiam filmes de sexo explícito.

Nostalgia! Havia um êxtase coletivo na platéia de quase mil lugares, era um acontecimento social. Hoje assistir esse filme em casa perdeu um tanto o encanto de vê-lo na telona e compartilhando as reações do público na cadeira ao lado, na frente, detrás. Na telinha virou um telecurso, incompatível com a grandeza que lhe outorgam os críticos e a história do cinema. Mas esta forma, o filme na telinha, é compatível com o caráter didático que, muito provavelmente, o diretor tinha ao realizá-lo. Garganta foi de grande valia pra divulgar a prática do sexo oral, vista com reserva e praticada com pouco método. Hoje tomar essas lições em casa será bom pra família tradicional e pra família gay. As qualidades e os defeitos da produção, anulando-se uns aos outros, acabam por dar à obra um raro equilíbrio. Fazem diferença a trilha sonora e a sonoplastia, um orgasmo auditivo, sem desemerecer o décor, figurinos, maquiagem e penteados, uma verdadeira lição das tendências vigentes no início da década de 70.

Garganta levantou uma discussão sobre sexo que não pode ser classificada de superficial, mas profunda. O resultado dessa discussão acabou ajudando a retirar das sombras todos aqueles que praticam sexo “não convencional”, mulheres e homens indistintamente. Tanto o sexo oral quanto o sexo anal são tabus, práticas condenadas socialmente, pois eles não têm finalidade reprodutiva, se faz por puro prazer. Tomado isoladamente o filme pode não ser nada demais, pode parecer ultrapassado; hoje há filmes de sexo explícito que parecem melhores e muito mais bem feitos em todos os sentidos. Mas o contexto da época fez desse filme uma obra cuja resultado ultrapassou o que se esperava dele.

O filme não é só um manifesto contra a sexualidade reprimida. Linda Lovelace não sofre essa repressão, é uma mulher "liberada". A sociedade e a platéia naquela época eram os que tinham a sexualidade reprimida. Talvez ainda hoje tenham, por isso o filme permanece válido. Atualmente o conservadorismo cresce assustadoramente em nossa sociedade como se não tivéssemos aprendido nada da lição que foi Garganta. A persistirem os tabus, a humanidade merece levar pau e repetir a lição, bem Linda.

Garganta trata, sobretudo, de pessoas com necessidades especiais, que não são minoria, pelo contrário. Linda Lovelace nasceu com o clitóris deslocado, e por esse motivo não sente prazer onde a maioria sente. A moça tem, no máximo, um “formigamento”. Quando o Doutor Young (Harry Reems) a examina, diagnostica e trata o problema, ela não apenas deixa de ser aquela pessoa triste de antes, ela passa também a ajudar outros que, como ela, também são especiais. O enredo do filme leva o problema para o lado objetivo, científico, embora seja um filme com toques de bom humor. Não é a amiga Helen (Dolly Sharp) ou os amantes de Linda quem descobrem o motivo dela não ouvir sinos nem explosões quando transa, é um médico. É um filme que derruba preconceitos a fórceps, realiza as fantasias da personagem, a catarse da platéia e mostra o quanto o corpo humano é uma máquina de prazer, sem limites, sejam físicos (caso de Linda), sejam psíquicos (caso do personagem que só goza com Coca-Cola).

O filme retrata uma personagem que é como a maioria das mulheres são ou como a sociedade as vê, que desconhecem o próprio corpo, que não conseguem encontrar prazer sexual, que são conservadoras, embora emancipadas, que só desejam é encontrar o homem certo, casar e ter filhos. E Linda encontra praticando sexo antes do casamento (que escândalo!). O filme acaba sem mostrar a cerimônia.

Muito se tem escrito e falado sobre esse filme e sua atriz emblemática que se tornou anos depois uma ativista contra a pornografia. O próprio cinema já voltou suas lentes pra recriar os fatos que cercam o filme que custou US$ 25 mil e rendeu US$ 600 milhões, possivelmente o mais rentável da história do cinema. Para quem quiser aprofundar-se na Garganta foi lançado o documentário Por Dentro de Garganta Profunda (Inside Deep Throat, 2005), dirigido por Fenton Bailey e Randy Barbato. Curtney Love fará o papel de Linda Lovelace em Lovelace (Lovelace, 2005), dirigido por Merritt Johnson, prometidos pra estrear ainda este ano. Linda ainda teve publicadas pelo menos cinco biografias “autorizadas”: Inside Linda Lovelace (1974), The Intimate Diary of Linda Lovelace (1974), Ordeal (1980), Out of Bondage (1986) e The Complete Linda Lovelace (2001).






Publicado em 20.09.2005 no Portal GLX

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