terça-feira, 26 de dezembro de 2006

A gênese do gênero

A gênese do gênero *

O princípio não é o verbo, é o movimento



O feed back dos leitores é essencial para rever as matérias publicadas e para pautar as seguintes. Recebi um e-mail alertando sobre minha desatenção quando, na matéria O Abaporu deles, falei sobre um Manual de Redação do Pornô porventura definido a partir dos pioneiros Garganta Profunda e Atrás da Porta Verde (1972), O Diabo na Carne de Miss Jones (1973) que, embora sejam filmes pornô hetero, teriam estabelecido os parâmetros para os gêneros sucedâneos, inclusive o pornô gay. O leitor me informou sobre Boys In The Sand (Wakefield Poole, 1971), como sendo o filme que poderia, de fato, ter estabelecido esse Manual. Sendo assim a história fica completamente invertida: teria sido um filme pornô gay que estabeleceu os parâmatros para os gêneros sucedâneos, inclusive os pornô hetero e bisexuais, pois o filme de Poole antecedeu em pelo menos um ano todos aqueles três filmes citados. Felizmente ele não contesta o que considero mais importante, a conjunção de variados fatores que favoreceram o surgimento do filme de sexo explicito como gênero autônomo e popular no início dos anos de 1970.

A idéia de escrever um Manual é controversa e deixa supor que existe um ou vários padrões de construção de um filme do gênero pornô, um fundamento, um esquema básico, a partir do qual se faz e se entende a imensa variedade de subgêneros, sendo o pornô gay apenas um dos galhos dessa árvore evolutiva. Esse Manual, de um modo geral já existe, é qualquer um de teoria cinematográfica. Alguns diretores podem não ter conhecimento dessas teorias, mas Wakefield Poole com sua sólida formação artística e carreira não pode ser considerado um diretor intuitivo, muito menos Jim, o fratricida dos irmãos Mitchell, produtores e diretores de Atrás da Porta Verde, ele estudou cinema enquanto serviu no exército americano e era declaradamente fã de Jean-Luc Godard. Embora alguns tenham entrado no negócio sem uma prévia formação, Gerard Damiano, por exemplo, diretor de Garganta Profunda e O Diabo na Carne de Miss Jones, era dono de um salão de beleza em Nova York; diretores com Jim Mitchel, Poole (coreógrafo, dançarino, performer), Steve Scott (egresso da Universal Studios) e Arch Brown (dramaturgo) reforçam, pelo menos em parte, uma gênese não-casual do gênero; esses diretores viram as produções eróticas da época, acreditaram que podiam aperfeiçoá-las e conseguiram.

Embora naquela matéria eu tenha levantado a questão, acho irrelevante a necessidade de um Manual específico, pois se o cinema é autoexplicável, sexo é muito mais. Se aprende a fazer fazendo. O padrão básico que distingue o pornô é o tripé chupada, metida e gozada, quase invariavelmente nessa ordem, e vai aparecer mesmo entre 1970 e 1972 em filmes gays e heteros. Se os realizadores chegaram a esse resultado de uma forma consciente ou por mero acaso não altera o prazer do espetáculo que apreciamos há mais de trinta anos. Esse tripé que diferencia os filmes softporn dos hardcore transita da tela para a "vida real" como o personagem de Jeff Daniels em A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985).

A humanidade sempre fornicou mas os filmes pornô ajudaram a aperfeiçoar a prática. Preciso de mais dados pra afirmar com certeza que o sexo oral não era um hábito tão popular antes desses filmes terem incluído o fellatio, anilingus e o cunillingus como as estrelas das preliminares em substituição ao beijo na boca. Desconfio que a manipulação do tempo na edição dos filmes contribuiu para prolongar a duração do intercurso sexual dos casais. Uma das grandes novidades do filme de sexo explícito foi a ejaculação fora do corpo, ao mesmo tempo nenhuma novidade; o coitus interruptus é um método contraceptivo arcaico que, no pornô, ganhou grande o efeito expressivo nos jatos de esperma que são o chafariz cinematográfico que tantos filmes aludiram, como a Fontana di Trevi de La Dolce Vita (Fellini, 1960) e os ambientes molhados no qual Esther Williams atuou em tantos filmes memoráveis. O orgasmo e a ejaculação masculina dificilmente podem ser simulados; não podem ser um truque porque o closeup (proximidade) projetado na tela (ampliação) não permitem. O ator do filme de bangue-bangue não sangra nem morre de verdade, o sangue dele é ketchup; o sangue que o ator do filme pornô dá pelo espetáculo é verdadeiro, pálido, viscoso e tem gametas. Ali se goza pelo espetáculo da câmera, para o prazer ao público, nem tanto pelo parceiro. Criou-se a ejaculação protagonista com trezentos milhões de espermatozóides figurantes; comparativamente, Ben-Hur (William Wyler, 1959) tinha apenas oito mil figurantes.

Estabelecer quem foi o pioneiro do filme de sexo explícito como o conhecemos hoje não era o assunto principal daquela matéria sobre Barebacking with Jeff Palmer-Volume 3 mas a atenção do leitor aos assuntos secundários merece resposta prioritária. Durante muito tempo, para mim e para muita gente, Poole e sua obra foram apenas citações vagas. Os filmes dele foram relançados numa caixa contendo ainda Boys in the Sand II (1986), Bijou (1972) e vários bônus. Para me certificar do que afirmava o leitor assisti Boys In The Sand. Um dia escreverei uma materia só sobre este filme, adianto que é mesmo surpreendente, um pornô gay lisérgico, uma obra fundamental para história do próprio cinema com algo mais que justifica a importância que tantos críticos lhe deram. Desses filmes que surgiram quase ao mesmo tempo, o que ficou deles foi muito mais o seu modelo do que eles próprios; mesmo assim, essas relíquias devem ser vistas ao lado da produção atual de filmes que expandem a linhagem pornô para a midia digital e para a internet.

Quem estiver interessado em saber como eram os filmes de sexo explícito gay antes dos anos de 1970 deve assistir pelo menos os primeiros dos 12 volumes da coletânea Gay Erotica from the Past, neles está ausente o tripé que aludi acima. Essa coletânea revela, em ordem cronológica, um patrimônio audiovisual muito rico, apresentado por um senhor circunspeto que discorre com ar professoral sobre os filmes softporn e naturistas de outra época. Ele tem atrás de si, como cenário, uma estante com livros, certamente é um esforço para negar o conteúdo pornográfico e dar à coletânea uma seriedade quase didática com a qual se tenta escapar da fúria inquisitória dos censores americanos. Embora risível, esse ardil é necessário por lá; para nós, brasileiros, é particularmente picaresco porque o senhor barbudo se parece, fisicamente, com Enéas, o político conservador do PRONA.

Há também os filmes do estudio sexagenário Athletic Model Guild - AMG lançados em DVD como, por exemplo, Story Film Classics: The Wild Ones, uma coletânea que reune vários curta-metragens (entre 10 e 20 minutos) produzidos entre as décadas de 1950-1970 dirigidos pelo lendário Bob Mizer (1922-1992), cuja biografia foi lançada em livro e virou filme intitulado Beefcake (Thom Fitzgerald, 1998). Os primeiros contam histórias simples de homens que se encontram e por qualquer motivo discutem, brigam, tiram a roupa ficam usando apenas um tipo de tapa-sexo, como dizem, a tiny g-string called a posing-pouch que eram feitos pela mãe de Bob, Delia Mizer! Os últimos filmes da coletânea mostram alguns modelos posando, entre eles Jim Cassidy, Avery Heath e Ramon Gabron, todos lindos, com ar de nostalgia. Não há ereção nem sexo, o que há de excitante, nestes filmes, são as lutas que simulam o ato sexual e são um prelúdio do que estaria nas telas dentro de poucos anos.

O cinema surgiu como registro da realidade, mais pra documentário do que para ficção. Quando foi exibido L'Arrivée d'un Train à La Ciotat, um pequeno filme de 50 segundos, rodado por Louis Lumière, um dos irmãos criadores do cinematógrafo, o pânico foi tamanho que vários espectadores tentaram fugir da sala temendo serem atropelados pelo trem. Frère Lumière apenas havia registrado um trem que vinha de Marselha que, na tela, parecia vir em direção à platéia. É essa sensação intensa de realidade, que só o cinema proporciona, que os diretores se apropriarão pra provocar sensações físicas e psiquicas nas platéias; o pornô vai provocar o gozo sexual. Desconhecida antes da invenção do cinematógrafo pelo público e pelos artistas, tal tipo de representação foi uma das causas que deflagrou a revolução modernista nas artes. Sobretudo, porque nos interessa mais, ela proporcionou prazer aos nossos antepassados em filmes curtos produzidos inicio do século XX, que eram considerados tão acintosos para a sociedade puritana da época que foi preciso inventar um tipo de controle para evitar os escândalos. Assim nascia a censura cinematográfica e as formas de enganá-la, o filme erótico, que ainda nem era de sexo explicito, não foi transgressor até o momento em que a sociedade lhe impôs limites.

O filme de sexo não abraça a motivação nem a originalidade criativa como valores supremos tanto quanto as outras artes, nesse aspecto se aproxima mais do registro científico, que se ocupa em registrar quantitativamente e precisamente o fenômeno. Já disse aqui antes que o pornô é um tipo particular de documentário; se suas taxas hormonais estiverem baixas pode parecer completamente desinteressante; homens jovens são seu público consumidor e produtor por excelência. O documentário e todos os gêneros cinematográficos de ficção, baseados na literatura, se estabeleceram antes da década de 1930, ao mesmo tempo que se estabeleceram os mecanismos de controle moral das películas, com exceção do filme de sexo explícito autônomo e popular, que é dos anos de 1970. Os gêneros cinematográficos não se manifestam de forma pura, sempre são híbridos, (comédia + drama; wertern + musical + ficção científica), o de sexo explicito não é exceção, entretanto, este, quanto mais puro melhor.

Não há sexo explicito na literatura, embora as palavras possam descrever o coito minuciosamente, na literatura há erotismo, nudez e sexo. Nem há em outro qualquer gênero artístico, embora se constate que nos anos em que o filme de sexo explícito surgiu os artistas estavam buscando expandir as "portas da percepção" por qualquer meio, químico, físico ou espiritual rumo ao infinito, absoluto, indizível. Em qualquer uma daquelas artes o sexo aparece como metáfora, raramente é o sexo em si mesmo, sem transcendência, na essência do movimento mecânico. O princípio do pornô não é o verbo, é o movimento, a ação. Não há o sexo explícito nos demais gêneros artísticos por limitada possibilidade cinética destes. Embora possível, no cinema convencional está ausente por conta o academicismo que ainda persiste entre os produtores e consumidores da produção artística de ranço erudito. No cinema dito alternativo, que tenta se desapegar da erudição, o sexo explícito também está ausente por conta da persistência da tradição e moral. No gênero pornô, que é ao mesmo tempo, realidade e representação, alternativo e convencional, o sexo é movimento, imprescindível, sincronizado com os 24 quadros por segundo. Um fotograma isolado de uma cena de sexo explicito é como uma borboleta presa na bandeja por um alfinete, linda e estática. Se eu fosse purista defenderia a tese de que o cinema deveria ser mudo, preto e branco e de sexo explicito. Como não sou admito o som e a cor, mas não dispenso o sexo.

*Esta é a primeira matéria escrita exclusivamente para este blog. Todas as anteriores foram publicadas no Portal GLX.



The Wakefield Poole Collection: 1971-1986
Estudio: Mercury Releasing, TLA Video
Duração: 365 min.
Diretor: Wakefield Poole
EUA, 2002

Gay Erotica From the Past
Estúdio: Pleasure Productions
12 Volumes
Vários Diretores
EUA
Story Film Classics: The Wild Ones
Estudio: Athletic Model Guild - AMG
Duração: 150 min
Diretor: Bob Mizer (Robert Henry Mizer)
EUA, 2006