sábado, 27 de junho de 2009

Aos calouros com carinho

Aos calouros com carinho
Wrangler: Anatomy of an Icon
Wrangler: Anatomy of an Icon
Grande parte dos e-mails que este blog recebe continua sendo de rapazes querendo ingressar na carreira de ator pornô. Eles escrevem para tirar dúvidas e pedir orientações. Embora os que fazem este blog dificilmente possam ajudar alguém neste sentido, fazemos as recomendações de sempre, repetindo o que já foi feito na matéria intitulada Primeiro emprego, publicada aqui em novembro de 2006. Para qualquer calouro toda a cautela é pouca e ousadia nunca é demais. Se são demais os perigos dessa vida, o ator pornô gay incorre em um risco que é próprio de carreiras ligadas ao sexo: a aceitação dessas profissões no ambiente social onde se vive. Dependendo desse ambiente, as chances de entrar e sair da profissão com dignidade são remotas. Diante de tantas carreiras mal sucedidas, que terminaram em tragédias, no mundo do filme pornô gay, muitos devem duvidar que seja possível alguém fazer filmes pornôs, enquanto a aparente juventude durar, e depois mudar de profissão, levando uma vida tranquila, até a boa idade, sem nenhum estigma. A esse respeito foi lançado, no final do ano passado, um filme que pode interessar a quem está ingressando na carreira pornográfica e a todos os pornófilos.

Wrangler: Anatomy of an Icon (Automat Pictures, 2008) é um documentário de longa metragem sobre um ator de antanho: Vida e obra do norte-americano Jack Wrangler (1946-2009), falecido no último mês de abril, aos 62 anos de idade, em Nova York. Este filme já havia recebido a atenção deste blog na matéria do último abril, intitulada GayVN Awards 2009, quando recebeu o prêmio de Best Alternative Release. Dirigido por Jeffrey Schvarz (40), também produtor, especializado em fazer filmes sobre a indústria cinematográfica, o filme interessa sob os mais diversos aspectos. Pelo assunto tratado, o surgimento dos filmes pornôs gays e héteros, entre o início dos anos 70 até o surgimento da AIDS, período considerado a Belle Époque do gênero; pelo perfil do personagem bem educado, bem nascido e bem dotado; no enfoque ousado do diretor que indistingue a indústria do filme de sexo explícito das outras produções audiovisuais, ponto de vista muito atual, haja vista a quantidade de títulos lançados, o faturamento e o nível de profissionalização que tiraram a maior parte das produtoras pornôs das categorias marginal e amadora nos últimos anos. A vida de Jack Wrangler, narrada pelo próprio e por pessoas ligadas a ele, é mostrada de uma forma que o homem e a obra se complementam – Jack parece ser intenso em tudo o que fez, não tendo sido jamais um dissimulado, deve ser admirado pela grande franqueza. O filme fica a desejar pelo formato expositivo que foi adotado pela direção. Todavia, esse formato é eficiente para o que se objetiva, que é contextualizar e aproximar, com uma linguagem simples, o tema do público. A morte de Jack Wrangler chegou a ser notícia em veículos de comunicação não dirigidos ao público gay do Brasil e do mundo, o que é raro, mas o que difere o documentário da notícia é que esta é emera e superficial, enquanto o documentário, mais consistente, além de informar, oferece uma interpretação pessoal do assunto.
Jack Wrangler

Schvarz documenta o que já se sabe: nos filmes pornôs há lugar para bons moços. Ele não polemiza sobre a importância atribuída a Jack como ícone da liberação sexual e do estabelecimento do estereótipo do gay viril hipertrofiado. Dentro da sociedade homofóbica dos EUA o tipo de gay efeminado era por demais chocante, nunca teve aceitação social e só tinha visibilidade quando aparecia de forma cômica em filmes e espetáculos de teatro. O tipo de comportamento mais conveniente para o gay era a neutralidade, uma complicada tática de camuflagem para se fazer insuspeito. No final dos anos 60 apareceu o tipo que nem era efeminado nem neutro, era o viril hipertrofiado. Esses três tipos, e suas variações, resumem, ainda hoje, padrões morfológicos e comportamentais dos homossexuais em geral. Jack e outros atores, como Roger e Al Parker, seus parceiros em alguns filmes, cultivaram a virilidade como estereótipo e a levaram às últimas conseqüências, fazendo cenas antológicas em que machos cheios de testosterona são sodomizados. Esse tipo de homem é uma apropriação do Marlboro Man, personagem popular, cowboy viril que foi inventado pela publicidade, em 1954, para convencer que cigarro com filtro não é coisa exclusiva de mulher. Eles entenderam que se um macho pode fumar cigarro com filtro eles também podem, sem se igualar a elas, fazer outras coisas mais que até então foram franqueadas apenas às mulheres. Essa idéia imortal sobreviveu à apologia ao tabaco. Fumante, Jack morreu de enfisema pulmonar, segundo fontes ligadas ao ator.

Wrangler: Anatomy of an Icon permite perceber como a vida de Jack em muito se diferencia dos atores que fazem filmes porque não possuem muitas alternativas profissionais e precisam sobreviver. Nascido John Robert Stillman, em Beverly Hills, Califórnia, seus pais eram ligados ao mundo artístico. O pai se chamava Robert Stillman, produtor de filmes e de series de TV. A mãe, Ruth Clark Stillman, foi uma dançarina dos musicais de Busby Berkeley. Sua inncia transcorreu dentro da opulência da classe media norte-americana do Pós-Guerra. Aos nove anos de idade o garoto começou a carreira na série de TV The Faith of Our Children (1953-1955), uma série dominical, premiada com o Emmy Awards, sobre família e religião, que tinha no elenco Eleanor Powell (1912-1982), a sapateadora, já decadente.
Robert Redford
Embora possuísse talento, Q.I. e outros atributos, Jack, ainda usando o nome de batismo, não encontrou trabalho fácil, antes de entrar para os filmes foi garçom e dançarino. Um dos primeiros papéis que conseguiu, aos 24 anos de idade, foi no espetáculo Special Friends, uma das primeiras peças com temática homossexual escrita por Douglas Dean Goodman que foi exibida em San Francisco, Califórnia. Ele fez o papel de um ex-prostituto, go-go boy do Arkansas, que passava a maior parte do espetáculo seminu ou pelado. A discreta semelhança física com Robert Redford (72), que na época estraçalhava corações com filmes feito Butch Cassidy and the Sundance Kid (1969) e All the President's Men (1976) permitia que os numerosos fãs de Redford realizassem seus desejos com Jack.

Em 1970 ele fez a primeira apresentação num show de striptease usando o nome Jack Wrangler, o sobrenome foi tirado da marca da calça jeans que ele usava na ocasião. Versátil ao extremo, trabalhou em filmes gays e héteros e contradiz aqueles que duvidam que exista criação de personagem neste ramo da arte dramática. Quem acredita que os atores dessa especialidade são meros modelos ou atletas que na cena usam o corpo e nada mais, não o conhece. Jack estudou teatro na Northwestern University, em Evanston, Illinois, talvez essa formação tenha lhe dado a ferramenta indispensável para que ele entrasse em cena para fazer um filme hétero sem nunca ter comido uma buceta na vida. O fato aconteceu quando ele já tinha uma carreira bem sucedida no pornô gay e estrelou China Sisters (1978).
Margaret Whiting & Jack Wrangler
Mas essa não foi sua única façanha do outro lado da vida. Enfrentou de calças arriadas o preconceito da classe média de onde veio para fazer os filmes e os shows ao vivo nos inferninhos da Costa Oeste e em Nova York. A sua alegada dificuldade em viver ao lado de um homem pode ter sido determinante para Jack se casar com a cantora Margaret Whiting (85), 20 anos mais velha do que ele. Os dois se conheceram em 1976, um ano muito importante na vida dele, casaram em 1994, viveram juntos por 33 anos, nunca tiveram filhos e a deixou viúva. Quem acredita que não exista ex-gay, também não o conhece. Transando profissionalmente com homens e casado com uma mulher, Jack era incompreendido por de gays e héteros.

Dentro do contexto da época, tão importante quanto os movimentos de liberação sexual, ocorridos na década de 60, foi a substituição do Código Hays pela classificação de filmes por faixas etárias, pela Motion Picture Association of América (MPAA), em 1968. Só quando esse obstáculo legal deixou de existir começaram a aparecer os filmes, shows e peças com sexo explícito nos EUA. Depois que Jack apareceu em Special Friends, o diretor da Magnum Studios, uma produtora pioneira que também vendia revista de homem pelado, decidiu fazer um filme com ele. Assim foi lançado Eyes of a Stranger (Magnum Studios, 1970), um dos primeiros filmes pornôs gays lançado comercialmente nos EUA. Jack afirmou, certa vez, que atuou nestes filmes por estar insatisfeito com a vida que levava, pelo desejo de viver uma aventura e, principalmente, por considerar estes filmes culturalmente subversivos e libertadores políticos. Esta opinião é valiosa por revelar o verniz underground (mais do que vanguarda) presente nos filmes produzidos na Belle Époque do gênero. Em entrevista para a Gaywired ele comentou que “naquela época estávamos todos tentando descobrir quem diabos nós éramos como indivíduos, o que nós queríamos especificamente de nós mesmos, o que queríamos ser, quais eram as nossas potencialidades, quais eram as nossas diferenças, o que nos fazia únicos... Eu acho que é por isso que os filmes pornôs foram importantes, porque me fez constatar que há outras pessoas que gostam das mesmas coisas que eu”.

Jack Wrangler in Night at the Adonis
A lista dos filmes estrelados por Jack Wrangler talvez seja a mais eclética de todos os atores norte-americanos. Começa com uma série de TV dominical e termina com um remake de pornô. A quantidade de filmes estrelados por Jack, segundo o Internet Movie Database é de 43, realizados entre 1953 e 1986, uma quantidade modesta diante dos impressionantes 354 filmes estrelados por Rocco Sifredi. O último filme de Jack, aos 40 anos de idade, foi Behind the green door 2, um pornô hetero que pretendeu, sem êxito, dar sequência ao antológico Behind the green door, lançado em 1972. Em 1982 ele já havia tentado dar sequência a outro clássico, The Devil in Miss Jones, ao estrelar The Devil in Miss Jones 2, fazendo o papel do demônio com uma ejaculação infernal. Contudo, os melhores filmes de Jack Wrangler são, sem dúvida, os do período gay, realizados entre 1976 e 1979 – quando Jack já era um trintão. Pela idade ele nunca pôde fazer o gênero de homem com aspecto de pós-adolescente. Entre estes filmes estão, entre outros, Kansas City Trucking Co. (1976), um road movie pornô que lhe deu notoriedade; The Boys from Riverside Drive (1977), o primeiro da parceria que fez com o lendário diretor Jack Deveau (1935-1982), no qual Jack aparece numa cena introdutória com Malo; Hot House (1977), também dirigido por Deveau, mostra dois amigos, Roger, um rapagão de bigode preto, e Jack Wrangler, que dividem um apartamento frequentado por vizinhos tarados; Sex Magic (1977) é sobre um anel mágico que realiza os desejos de quem meter o dedo; Heavy Equipment (1977), dirigido por Tom DeSimone, é um filme imperdível, cheio de efeitos especiais e a presença dos Christy Twins, Roger e Al Parker; A Night at the Adonis (1978), outro dirigido por Deveau, se passa numa boate (Adonis) e tem uma grande suruba no toalete, com música disco de Sylvester (1947-1988).

Seus filmes heteros devem ser considerados com parcimônia, pelo menos aqueles em que fez sob a direção de Chuck Vincent, um diretor gay assumido que fez filmes em que estava mais atento em mostrar paus do que bucetas. Entre eles Jack and Jill (1979), Roommates (1981), In Love (1983) e Voyeur (1984). Nessa época a carreira cinematográfica de Jack já estava bem consolidada, mas ele não deixou de fazer teatro. Co-estrelou o espetáculo T-Shirts, no teatro Glines, de Nova York, e estrelou Soul Survivor, um o espetáculo sobre um gay que perde o namorado vitima de AIDS. Jack foi, ele mesmo, um sobrevivente da epidemia. Quando já considerava ter dado tudo o que podia no pornô gay ele publicou uma autobiografia intitulada The Jack Wrangler Story: Or What's a Nice Boy Like You Doing? (esgotado em inglês, inédito no Brasil) e começou a dar atenção para a carreira de Margaret Whiting, para quem escreveu o libreto do musical I Love You, Jimmy Valentine. Desde então, dizem que somente esta continuou a vê-lo pelado.

Não existe uma vida de todo exemplar, mas a de Jack Wrangler é, pelo menos como foi documentada neste filme, uma lição endereçada aos calouros com carinho.
Saiba Mais: Jack Wrangler no IMDB Wrangler: Anatomy of an Icon no IMDB Entrevista de Jack Wrangler no Gaywired