quinta-feira, 23 de julho de 2009

Mil orgasmos pela arte

Mil orgasmos pela arte
Neovanguardas e pornô
Quem, por desventura, não compreender o empenho desta equipe em produzir este blog, atente para esta matéria. Ela lançará luzes sobre o surgimento, a existência e a nossa missão, necessárias desde que a proliferação dos blogs levou tantos internautas a questionarem a qualidade da informação que circula neles.
Jeremy Walker Randy Blue
^ Jeremy Walker, Randy Blue (2008).

Através do exame dos filmes pornôs gays, amiúde considerados um tema menor, este blog tem procurado dar um sentido a essa produção audiovisual, talvez a mais consumida e a menos discutida na produção artística contemporânea, o único produto da indústria cultural ainda não inteiramente absorvido pela moral normativa. Este blog discorre sobre um período de menos de quarenta anos, articulando o pornô gay a todas as áreas do conhecimento que possam vir em seu auxílio.
GERARD DAMIANO
^ Gerard Damiano.
 
Como qualquer outro produto, esses filmes, seus artistas e seu público são testemunhas e resultados de um tempo e de um espaço. Para melhor conhecê-los, sem querer se colocar dentro de um esquema acadêmico e livresco que, de fato, raramente lhes deu tratos, este blog pretende apenas estar presente no veículo que se tornou tão adequado à pornofilia, a internet, cuja confiabilidade não é menor do que de outro meio qualquer. No que pese desfavoravelmente a desordem estrutural da rede, a rapidez de seu desenvolvimento torna-se uma vantagem e, no seu compasso acelerado, na sua economia de meios e usabilidade, a teoria torna-se um assunto do aqui e do agora, semelhante ao que também acontece no pornô.
Jack Wrangler
^ Jack Wrangler.
 
A matéria Aos calouros com carinho sugeriu o mote para escrever a matéria deste mês de julho. Quando o ator Jack Wrangler (1946-2009) afirmou que atuou nos filmes pornôs gays “por estar insatisfeito com a vida que levava, pelo desejo de viver uma aventura e, principalmente, por considerar estes filmes culturalmente subversivos e libertadores políticos”, há duas hipóteses a considerar. A primeira, de que ele estava sofismando e, assim sendo, o assunto se encerra, a não ser que se queira tratar das formas de enganar uma esposa com floreios, mas este não é local para isto. A segunda, de que ele deixou transparecer duas das aspirações mais fecundas das vanguardas artísticas: a crítica da separação entre arte e vida e a arte como subversão da ordem instituída. Assim sendo, somos levados a relacionar pornô e arte, e este é local adequado.
Fountain, Marcel Duchamp
Fountain, Marcel Duchamp.
 
O erótico, entendido como a representação do ato sexual de forma não-explícita, sempre esteve presente na arte, muito antes do mundo estar inteiramente erotizado, como hoje. O pornô, entendido como a representação explícita dos atos sexuais, é igualmente antigo, contudo o mundo atual está apenas parcialmente pornolizado. A arte serviu-se à exaustão do erótico para provocar o puritanismo conservador. Quando este não se sentiu mais provocado com o erótico, a arte começou a se servir também do pornô com a mesma finalidade. Fountain (1917), um ready-made de Marcel Duchamp (1887-1968), por exemplo, foi considerado obsceno não pelo que mostra, um urinol de louça branca, mas pela quantidade enorme de pênis que um objeto como aquele evoca. O título reforça a ausência dos falos, já que o urinol não é fonte, é aparador dos fluidos dos falos, estes que são, dentre todos os objetos existentes, certamente os mais cultuados.
Marcel Duchamp como Rrose Sélavy.
^ Marcel Duchamp como Rrose Sélavy.
 
Duchamp foi um grande artista, um provocador, notório punheteiro, tarado incorrigível, conquistava indistintamente homens e mulheres, mas não há noticias de que fosse homossexual, não de forma assumida. Toda sua obra rescende a sexo, masturbação e fetiche, com representação de travestismo e androgenia pelo próprio. E importa comentar a vida pessoal de Duchamp e de qualquer artista desde que eles propuseram o rompimento da dicotomia entre arte e vida. A crise da representação, da distância cada vez menor entre representação e realidade, foi uma das grandes questões enfrentadas pela Arte Moderna. Para artistas plásticos e muito mais para artistas dramáticos, representar confunde-se com ser.

Jack Wrangler, primeiro à esquerda.
^ Jack Wrangler, primeiro à esquerda.
 
Depois de Duchamp passaram algumas décadas até que filmes, shows e peças com sexo explícito começassem a surgir nos EUA, por volta do final dos anos de 1960, devido à conjunção de pelo menos três fatores independentes: os movimentos emancipatórios e de liberação sexual percorreram um longo caminho que levou a distensões que criaram condições para que questões de raça, sexo e gênero deixassem de ser unicamente objeto de luta política e pudessem ser, também, objeto de identidade, expressão artística e consumo. A substituição do Código Hays, da Motion Picture Association of América (MPAA), pela classificação de filmes por faixas etárias, de acordo com o conteúdo. As transformações no campo da arte favoreciam as práticas culturais engajadas e alternativas, que incluíram o uso do corpo, da mente e dos signos como expressão. O sexo, graças à ciência e à medicina, podia ser praticado de forma livre e segura, a gravidez indesejada e a doenças sexualmente transmissíveis deixaram de ser problema com o surgimento de métodos anticoncepcionais eficientes e todas as doenças sexualmente transmissíveis podiam ser tratadas com antibióticos. Até mesmo a Igreja Católica, mentora do Código Hays, tomou o caminho da renovação no Concílio Vaticano II.
Visions, Justin Monroe.
Visions, Justin Monroe.



Também na Europa, no Japão e na América Latina, considerando as diferenças locais, adveio o relaxamento de muitos limites morais e legais do comportamento e da expressão artística. Todos os movimentos que retomaram os princípios que nortearam as vanguardas pioneiras em outro contexto histórico, do capitalismo avançado, do consumismo exacerbado e tendo os EUA como pornô-potência mundial, podem ser chamados, genericamente, de neovanguardas. Elas transformaram as vanguardas em história e permanecem ativas até hoje. Seu advento permitiu aos artistas contar com uma variedade enorme de linguagens, técnicas e estratégias, inclusive aquelas que envolvem o corpo e os meios de registro, reprodução e transmissão audiovisuais. Hoje, a principal mídia das neovanguardas é a internet, onde inexiste uma das barreiras mais excludentes, aquela que distingue os homens entre especialistas e amadores. O capitalismo, que provou ser até dos excluídos, foi flexível o bastante para abrigar dentro do seu sistema produtivo as proposições mais e menos radicais de qualquer tempo. Ao mesmo tempo que fez da tolerância uma mercadoria de valor civilizatório.
Cosey Fanni Tutty
Cosey Fanni Tutty


Na época que Jack Wrangler disse a frase acima, qualquer coisa poderia ser considerada como uma obra de arte, sem nenhuma necessidade de atender anseios, contingências morais, pessoais, de ser subversiva ou libertadora política. Para tanto, bastava relaxar, deixar a coisa acontecer, e o resultado era arte. O cu foi protagonista não apenas no pornô, mas nas artes plásticas. Enlatou-se merda de artista e vendeu-se a peso de ouro como se fosse arte. Esse período foi de uma efervescência sem precedentes para os antes inexistentes movimentos gays e de atitudes trans-gênero. A rebelião de Stonewall aconteceu em 1969 e, desde então, as pessoas se sentiram mais confiantes em exprimir nos corpos o que andava nas cabeças. Artistas como Klaus Nomi (1944-1983), com vozeirão e figurino dadaísta a la Hugo Ball, Lou Reed (1942-), afilhado de Andy Warhol, visual leather e assíduo frequentador do lado obscuro de Nova York, David Bowie (1947-), andrógino e galático Ziggy Stardust, Tom Robinson (1950-), o intérprete e compositor da canção Glad to Be Gay, e o grupo The New York Dolls, que apareceu dando pinta com um visual glitter que não se via nem no submundo, todos estes artistas, entre outros mais, estavam, então, transpondo para o palco o clamor das ruas, das alcovas e do íntimo. Até onde se sabe, nenhum deles fez pornô na forma como estes filmes se consagraram, com a estrutura tripartite de chupada, metida e gozada ou nas suas variações. Contudo, o desbunde que eles protagonizaram, considerado softcore, estabeleceu uma relação de equilíbrio com o hardcore de Gerard Damiano, Wakefield Poole, Jack Wrangler e Peter Berlin, para citar apenas os pioneiros de primeira categoria. Os filmes pornôs possuem tanta afinidade com a expressão dos desbundantes e transviados de todas as épocas quanto com a obra de Dziga Vertov (1896-1954) ou François Truffaut (1932-1984), assunto para tratar noutra matéria.
COUM Transmissions.
COUM Transmissions

Entre o softcore e o hardcore há um amplo campo para ser explorado. Robert Mapplethorpe (1946-1989), Quentin Crisp (1908-1999) e Tom of Finland (1920-1991), cada qual ao seu modo, criaram condições para trazer para a cena uma prática sexual até então obscena, de consequências até para homens e mulheres heterossexuais. Na Inglaterra, Cosey Fanni Tutty (1951-), Genesis P-Orridge (1950-), Chris Carter (1953-) e Peter Christopherson (1955-) formaram o grupo COUM Transmissions e fizeram várias performances escandalosas no início dos anos 70, como Prostitution, no Institute of Contemporary Art, de Londres; depois formaram a banda Throbbing Gristle (uma gíria que significa ereção). Nos Estados Unidos, Jerry Dreva, a.k.a. Jerri Bonbon, (1945-1997), fez parte do Les BonBons, um grupo de drags que tocavam rock conceitual. Dreva atuou em performances, foi um mail artist ativo, obsceno e escreveu, com o próprio esperma, um curioso livro de arte chamado Wanks for the memories: the seminal work. Seu trabalho influenciou artistas como David Bowie (capa do single Ashes to Ashes, 1980) e Gronk (1957-), um artista de Los Angeles, membro fundador do ASCO, coletivo de arte multimídia, com quem Dreva manteve um intenso troca-troca de mail art. Dreva ficou conhecido como o “homem que teve mil orgasmos pela arte”, por ter enviado, pelo correio, assemblages com manchas sépia produzidas com esperma.
Jerry Dreva.
Jerry Dreva.

Jack Wrangler soube aproveitar o ensinamento de todos eles, tendo mil orgasmos pela arte, ou mais, e a frase dita por ele indica que ele tinha consciência a respeito de uma existência não-satisfeita. Demasiadamente humana, esta consciência se manifesta de forma mais intensa nos artistas cuja sensibilidade é tão tocada pelas incertezas. Quando Jerry Dreva afirmou que “o que estou tentando fazer é apontar um futuro onde a arte não mais existirá como uma categoria separada da vida”, ele estava manifestando, com outras palavras, a mesma consciência de Jack Wrangler.
Terry Richardson.
Terry Richardson.

Os estudos que Wrangler fez na Northwestern University, em Evanston, Illinois, não serviram apenas para a construção de sua própria consciência e de seus personagens, mas, igualmente, para identificar valores existentes nos produtos industriais que os distingue dos objetos de arte tradicionais. Na época em que estrelou Eyes of a Stranger (Magnum Studios, 1970), um dos primeiros filmes pornôs gays lançados comercialmente nos EUA, as razões para considerá-los culturalmente "subversivos" e "libertadores políticos" eram parcas porque eles eram, sobretudo, produtos industriais que visavam o mercado. Questões outras, como a qualidade do produto, valor artístico e ideologia, embora estivessem presentes, eram secundárias mesmo quando favoreciam as vendas. O pornô não é uma corrente autônoma, mas integrante do sistema das artes e da indústria cinematográfica. Também no seu nicho específico, o lucro é o que importa, independente do que move quem faz a cena.

Memoria em Disputa Arte Obscenas em foco
Para concluir, o pornô não pode ser considerado como cinema de vanguarda. Pela sua estrutura “aberta”, eles flertam muito mais com as correntes do underground, da contracultura e das neovanguardas do que com as vanguardas, de estrutura mais “fechada”. Este tem sido o seu lugar na produção artística contemporânea.