A desfaçatez é broxante
Há um tanto de ironia intimidante no aviso que diz, “Sorria você está sendo filmado”. Como se não bastasse a facilidade de captação de imagens, multiplicou-se, hoje, a forma de transmiti-las e copiá-as. Por este motivo, para homens e mulheres de vida pública, ficou menos segura a prática secreta da desfaçatez porque há sempre o perigo do flagrante filmado cair na rede, e isso pode não ser engraçado. Mas eles não se intimidam. Só para ilustrar, uso um exemplo recente: um dos principais asseclas do presidente Luiz Inácio “Eu Não Sabia” da Silva, Marco Aurélio Garcia, foi flagrado no último dia 19 por uma das inúmeras câmeras que ficam de plantão na Praça dos Três Poderes, em Brasília, fazendo um gesto obsceno enquanto assistia a reportagem da Rede Globo sobre o defeito técnico no avião da TAM que explodiu em São Paulo dois dias antes. Ao seu lado, o assecla do assecla foi mais efusivo nos gestos. Sem nenhuma palavra, as imagens deixaram bem claro o que os dois queriam dizer: não importa os mortos, a empresa aérea, e não o governo, é a responsável por aquela tragédia: fudeu-se.
A linguagem gestual é tão rica quanto a oral, nelas existem inúmeras palavras e gestos para representar o coito. Nesse aspecto o filme de sexo explícito é incrivelmente pobre, nele há um repertório povero das possibilidades de representá-lo, como o samba de uma nota só, onde entra outras notas mas a base é uma só. Nas outras linguagens há uma riqueza que, na maioria das vezes, encobre crimes, cafajestagens, preconceitos, moralismos, erotismo-clichê, sexismos e fundamentalismo anti-pornográfico.
Para quem não viu, ou pra quem está querendo rever, a cena de Marco Aurélio Garcia fazendo tof... tof... tof... com as mãos está disponível na internet e pode ser acessada fácil e livremente em vários sites. Essa facilidade é o que incomoda muita gente de vida pública que preferia ver esquecidos os atos nada falhos, filmados, que revelam, de fato, quem eles são. O modo simples de acessar todas essas imagens era inimaginável pouco tempo atrás e algumas pessoas ainda nem aprenderam a conviver com essa novidade. Para homens e mulheres anônimos está aí a oportunidade de ser alçado ao estrelato em pouquíssimo tempo, que o diga Maria Alice Vergueiro, a atriz do engraçadíssimo curta-metragem Tapa na Pantera (Ioiô Filmes), que se tornou febre na internet. Aos 71 anos de idade, ela afirma que nunca fez tanto sucesso. Os sites XTube, PornoTube, PornTube, 3XUpload, Cam4Cam, The Free Project Voyeur e os inúmeros camchats têm amadores que são verdadeiros blockbusters. O sites facilitam a navegação exibindo listas dos top rated videos em diversas categorias, inclusive promovendo concursos e distribuição de prêmios.
A desfaçatez é broxante mas não é exclusiva da política e do show business, acontece que nestas áreas ela pode ter consequências trágicas. Ângela Guadagnin nunca pareceu uma marafona até o dia em que dançou a dança da pizza no plenário da Câmara dos Deputados em comemoração à absolvição de um colega acusado de corrupção. Pelo contrário, antes dessa dança a ex-deputada parecia uma tia fofinha, incapaz de um ato obsceno, mas a coreografia dela, sacudindo a pélvis, sem ser Elvis nem uma mulata do Sargentelli, foi outro gesto, talvez o mais óbvio de todos, de representar o coito. Neste caso ela quis dizer: honestos, fodam-se. Marta Suplicy, que sempre pareceu uma marafona, ficou perfeitamente natural quando aconselhou o “relaxa e goza” aos turistas apavorados com o caos aéreo brasileiro. Sem gestos, foi oralmente mais obscena que Linda Lovelace. A sentença foi dita de forma abreviada, por extenso é: “relaxa e goza porque nós não vamos fazer nada”.
Comparado a certas figuras públicas, as imagens de sexo explícito de um Kevin Willians ou de um Chad Douglas são exemplo de coerência moral invejáveis, não há prejuizo social, são de uma época diferente de hoje, quando um filme, mesmo os melhores, raramente podia ser visto mais de uma vez.
Todas essas pessoas de vida pública devem ter se enchido de alegria e esperança quando um juiz brasileiro tirou do ar o site YouTube atendendo uma ação movida pelos advogados de Daniella Cicarelli, empregada da MTV Brasil. Depois de passar cinco meses bloqueado, ter sido liberado por uma semana, hoje está novamente bloqueado o vídeo no qual o casal protagoniza cenas de uma modalidade obscena de nado sincronizado em uma praia na Espanha. Este vídeo também exibe uma representação do coito, talvez seja o mais próximo que se possa chegar do ato propriamente dito, já foi exposto aqui as impossibilidades do ato ter sido consumado. Com a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo quem se fudeu foi a liberdade de expressão.
A modelo-apresentadora da TV Globo, Xuxa Meneghel, colega de profissão da menos afortunada Cicarelli, pode ter sido uma das que mais se encheu de alegria e esperança. Essa decisão judicial é um alento, ainda não formalizado, para a “Rainha dos Baixinhos” pretender tirar da internet as imagens do filme Amor Estranho Amor (Walter Hugo Koury, 1982), em que encena um ato sexual com um… baixinho! A dificuldade de retirar conteúdo da internet, dada a facilidade de inserir conteúdo, é o que provavelmente ainda recomenda cautela para a apresentadora e seus advogados, que possivelmente não querem ver o caso se transformar em descontrolada e desnecessária publicidade.
A semelhança entre os casos de Xuxa e Cicarelli é uma lista interminável que finaliza com a impossibilidade técnica de se cumprir, eficazmente, a decisão judicial dos sonhos delas: fazer evaporar dois filmes que, supostamente, emporcalham suas carreiras. Elas podem tentar, usando todos os meios possíveis, ainda assim não há nenhuma garantia de que esses filmes não voltem a aparecer em novas cópias. Mas sobre o conteúdo, o que as desabona? No caso de Xuxa aquelas imagens não a indiciam como pedófila. Embora ela seja uma atriz que representa mal, mesmo assim, foi uma representação e não um ato sexual real. No caso de Cicarelli não consta que ela seja casta ou lésbica, então o video dela com o namorado não revela coisa alguma que já não se soubesse a seu respeito.
Já que se falou em representação e realidade, cuja distinção é muito tênue, é oportuno fazer um esclarecimento: nos filmes de sexo explícito, nos filmes protagonizados pelos políticos e por Cicarelli a representação está a nível pictórico, enquanto a realidade está no nível da ação - eles fizeram. Num filme de ficção, como Amor Estranho Amor a representação está em ambos os níveis pictórico e da ação - ela não fez. A situação de Xuxa seria bem diferente se ele tivesse tivesse enveredado por uma carreira dramática em vez de uma animadora de platéias infantis, cantora ou atriz de terceira categoria; uma atriz de verdade não teria essa preocupação. Agora é ela quem tem dificuldade para tirar da internet imagens do filme, como ficou registrado em matéria da Folha Online. Fica a pergunta: o YouTube será bloqueado de novo?
Uma decisão judicial já proibiu o acesso comercial a Amor Estranho Amor no Brasil, num caso acintoso no qual se fuderam o quase invisível cinema brasileiro e, mais uma vez, a liberdade de expressão e circulação de informação. Contraditoriamente o filme foi embargado pela justiça para proteger a imagem de Xuxa, e não do ator Marcelo Ribeiro, na época do filme uma criança de apenas 12 anos que, depois da desdita, despontou para o anonimato. Ribeiro, hoje com 38 anos, ainda dono de um rosto que lembra o menino bonito do filme, entrete seus próprios filhos e, em entrevista à Folha Online, contou que está escrevendo um livro sobre fatos que envolvem esse episódio. Walter Hugo Koury (1929-2003) foi um diretor brasileiro existencialista como Chiquita Bacana lá da Martinica, realizou 25 longas-metragens mas acertou a mão em um filme apenas, Noite Vazia (1964). A única relevância de Amor Estranho Amor é contar com Xuxa, então uma novata, num elenco de estrelas nacionais maiores que ela, como Tarcísio Meira e Vera Fisher. Em menos de uma década Xuxa os superou na fama, na fortuna e na desfaçatez, não no talento. O filme é uma bobagem mas deixará de sê-lo se alguma dia, a pretexto de seu conteúdo, se atentar contra os direitos da maioria para, por uma questão moral, por um fato insignificante, se preservar do interesse de uma única pessoa.
É dever de todos opor-se às tentativas de restrição de conteúdo na internet por motivos morais e políticos porque isso é censura. Quem quiser ver tais filmes não terá muita dificuldade, pelo próprio mecanismo de funcionamento da internet, ainda estão todos lá. Mas esses ninguém merece, valem menos que o mais rudimentar pornô.